CORAÇÃO – algumas estações e encruzilhadas de Aruê!

Eduardo Bartolomeu | Direção 

Sempre me intrigou muito a percepção no mundo do quanto o simples nome “macumba” pode causar aversão imediata em algumas pessoas, por vezes seguida de malquerenças, menosprezos. . A reação pode ser mais violenta quanto à palavra “pombagira”!
A concentração de um submundo de paixões das mais despudoradas? Todo azar de traições e crimes, que estão conectados às pombagiras? O fato de serem divindades tão necessitadas dos vícios terrenos? O contrapeso às santas mães sagradas e todo seu imaginário pudico?...
Muitas indagações, pistas e vozes recolhidas e assimiladas de fontes diferentes: da boca do povo, nas páginas que passeamos, nas constatações daqueles que tanto estudaram e na afirmação dos praticantes desta fé - Um moinho soprando vento pra toda direção e nossa sensibilidade almejando um espetáculo de teatro.

As voltas, encruzilhadas, idas e vindas deste Aruê!, foram voltas, encruzilhadas, idas e vindas para um mundo que à princípio nos parecia tão distante, que de tão longe, acabou mostrando que tinha seus fios também conectados a cada um de nós. Falo de nós, que fiamos cada ponto desta teia – texto, personagens, figurinos, cenário... nada caiu do céu (nem subiu do inferno) e nada existiu sem uma mão de fora estendida e pronta pra colaborar. Pareceu às vezes milagre as necessidades magnetizando seus portais, seus colaboradores. Lembro de quando já não sabíamos mais o que fazer após as inúmeras tentativas para a feitura do cenário e em meio ao desapontamento, aparece o Pedro Quintanilha sacando cadernos, rabiscando possibilidades, dando mil idéias... e dentro de poucos dias, aparecendo com a primeira versão do cenário.

Coração de Pombagira – um dos primeiros contos que ganhamos do parceiro e professor Reginaldo Prandi – desencadeou um verdadeiro turbilhão de possibilidades de invenções. Coração que, mais tarde no desaguar desta cachoeira, saberíamos feito de tanto amor, de sangue e de um pulsar lascivo, cortante, igual aquele que vive nas veias do mundaréu de criaturas feitas por Plínio Marcos.
Como nas encruzilhadas, destas que vemos nos trevos das cidades, a cena em Aruê! revela personagens do “Barba Azul” (conto francês), de “Amapola” (história de vida e morte de uma pombagira menina – recriação do grupo) e “Mari e Su” (criação do grupo), que passeiam, se confrontam, se misturam - desobedecem fronteiras de suas histórias para mergulharem-se numa Grande Encruzilhada.. Os atores, entre portas, facas e flores, desenham as paisagens destas três histórias sobre o massacre e a resistência do feminino selvagem.
Um jogo de cartas deflagra cada uma das três histórias, um jogo que desemboca sempre na carta “morte”.

Apesar de pombagira ter sido mulher da vida, calejada por histórias cortantes, seu “departamento” nos cultos e no imaginário popular espreita outras cores. É a ela que se pede amor impossível ou amor de volta, é a protetora das meninas desamparadas nestas casas de beira de rodovia destas quebradas do mundaréu. Ao lado de Exus, Caboclos e Marinheiros, estão na face considerada “esquerda” de rituais afrodescendentes e como nos explicou Prandi, assimilam o que é negado ou disfarçado em outras práticas religiosas. Já nas primeiras estações de nossa pesquisa, confrontávamos com os olhares de faca, com as nuances feiticeiras da sensualidade, com os perigos das ruas sem saída, com rios de desejos presos por barragens. Também nestas primeiras estações compreendíamos que não sairíamos ilesos deste projeto que pretende homenagear estas guerreiras/putas/divinas/feiticeiras... E que bom!
Dentro ou fora dos terreiros, pombagira que hoje roda como Maria Molambo, Sete Saias, Amapola, Rosa Caveira e tantas outras, é figura resistente no tempo, encontrando suas raízes na Europa do Século XVI, como amante do Rei D. João VI de Portugal. É de causar perplexidade conhecer um pouco da sua viagem até a chegada aos terreiros do Brasil, influências e resistências, contadas por Marlyse Meyer na sua maravilhosa obra “Maria Padilha e toda sua quadrilha”, um farol na nossa caminhada.

Demorou para Aruê! ficar pronto! Para além de juízo de valores, hoje, é bom reconhecer nas cenas este e tantos outros faróis por detrás desta síntese e concentração de idéias e sonhos que é o espetáculo. Reconhecemos prostitutas, feridas de tantas esposas, a ilusão de contos de fadas que escondem quartos/açougues de disfarçados senhores sóbrios e conquistadores.
Reconhecemos também nosso desejo de existirmos em Francisco Morato, cidade onde estamos relutando para seguirmos com arte. Lugar cada dia mais difícil e mais desafiador para este intento.
Reconhecemos nossas dificuldades, limitações pessoais, a vontade de construirmos uma linguagem, o desejo de sermos somente grupo de teatro sem deixarmos de dialogar com a comunidade que está aqui, ao lado do Espaço Girandolá.
Reconhecemos a bravura, a luta, a miséria, o medo, o desejo, o sonho em cada um de nós do Girandolá (Gilberto, Fabia, Rose, André, Beto, Meire, Mari e eu) e aí, a memória desta gente nesta construção de um espetáculo não me deixa nem escrever mais, a maré nos olhos é contagiante e me pede silêncio.

Aos meus queridos companheiros, meu coração... pulsando como se ele fosse um Coração de Pombagira!

Aruê!













 

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